sábado, 14 de agosto de 2010

Nos braços da galera




Stage diving. Lady Gaga se joga de cima do palco, no meio da execução de uma música


Na tarde da sexta-feira, 6, durante o show da banda Semi Precious Weapon, no festival Lollapalooza, em Chicago, Lady Gaga fez de novo. A estrela pop (que um crítico do New York Times descreveu como "a artista que faz da própria persona sua grande obra") jogou-se com voracidade sobre a plateia, seminua, aparentemente sem garantias de retorno ou segurança, dando novos contornos a um velho recurso do rock"n"roll conhecido como crowd-surfing (surfe na galera) ou stage diving (mergulho no público).

Não é novidade, mas Gaga sempre faz parecer que é a primeira vez. "Não sei o que me deu, foi por impulso", afirmou. Isso parece ser seu talento. "Lady Gaga se tornou sucesso por aderir à crença de que não há verdade interior a ser propagada, e tudo que se pode fazer é inventar de novo", disse o jornalista Jon Caramanica.

Stage diving virou um tipo de "artesanato" - já ocupou até uma exposição em Londres, na National Gallery. "É um belo feeling, um lance social", diz a letra de Stage Diving Is an Art, do grupo Heideroosjes. Críticos e historiadores do pop e do rock, ouvidos pelo Estado, fazem uma revisão do stage diving à luz do mergulho de Gaga. Hedonismo de laboratório? Exibicionismo calculado? Simbiose entre artista e público?

O escritor norte-americano James Sullivan, autor de O Dia em Que James Brown Salvou a Pátria (Jorge Zahar Editor), considera que o mergulho de Lady Gaga, um pouco mais corajoso do que o stage diving controlado do star system atual, também teve certa dose de cálculo. "Ela não estava totalmente nua e, tenho certeza que você notou, tinha até um monte de roupa, algum tipo de reforço na calcinha e adesivos protegendo os seios. Ainda assim, foi arriscado", analisou Sullivan.

Para Sullivan, pesquisador rigoroso dos primórdios do soul e do funk americanos, a invenção do stage diving pode tranquilamente ser atribuída a Iggy Pop. "Ao menos, foi ele quem institucionalizou a prática. Tenho certeza que James Brown não faria isso: poderia bagunçar o cabelo dele", brincou. Segundo o historiador musical, stage diving pode ser, e geralmente é, mais do que exibicionismo. "Ele forja uma conexão genuína entre o artista e seu público. É também uma demonstração de confiança. Poucas coisas podem ser mais humilhantes que um stage diving no qual a audiência se mexe, deixando o mergulhador se espatifar no chão."

O apresentador e escritor Fabio Massari diz que "adoraria acreditar que foi Iggy Pop" a oficializar o stage diving. Massari, veterano da cobertura do show biz, conta que o mergulho mais assustador que já viu foi do vocalista Sebastian Bach, durante um show do Skid Row, no Ibirapuera. "Ele mergulhou na galera e desapareceu por alguns longos instantes - sob a turba pra lá de histérica de meninas mui agressivas!", recorda. "(Lembro) a cara de terror dos seguranças, literalmente dando porrada nas meninas pra tentar chegar nele... Os caras surtaram! E ele naquela de se divingrtir, mas já com cara de pavor . A essa altura ele já estava a uns 15 metros do palco. Subiu de volta só com parte da calça. Depois cruzei com ele no backstage, parecia que tinha se atracado com um cacto. Me lembro também de um cara que pulou do segundo andar do Olympia num show dos Ramones!"

Lúcio Ribeiro, colunista do Estado, deu o seguinte depoimento: "Essa arte de pular na galera vem do punk. Mas vi uma vez um documentário em que o Peter Gabriel, do Genesis, pula do palco e a galera abre para ele se esborrachar no chão", lembrou. "Recentemente, num show do Hole, a Courtney Love pulou do palco bem perto de onde eu estava. Minhas mãos ajudaram a "passar" a moça para trás. Foi no festival do Texas, o South by Southwest. Mas os mais impressionantes stage diving que eu vi, de artista, foram sempre do Kurt Cobain, em shows do Nirvana. Não tinha a noção do perigo."

Lúcio ressalta também a originalidade de Wayne Coyne, do Flaming Lips, que desliza por cima do público prudentemente preservado dentro de uma bolha de plástico. E lembra outros casos. "Uma vez, em Chicago, durante show do brasileiro Bonde do Rolê em que eu estava presente, a vocalista Marina Ribatski pulou no público, surfou pra lá e para cá na mão da galera e foi "entregue" de volta ao palco. Só que, na aterrissagem, foi jogada de volta ao palco, bateu o braço numa quina e teve fratura, acabando primeiro com o show e depois no hospital."

Bernardo Araújo, crítico e editor-assistente do Segundo Caderno de O Globo, lembra o seguinte acerca dos primórdios do comportamento no Rio: "O crowd-surfing, ou stage diving, ou ainda mosh, como era chamado, pelo menos no Rio, por volta dos anos 1980 e 90, era um ritual de meninos basicamente atrás de divingrsão e glória: o roqueiro em questão precisava, no mínimo, atravessar a segurança - muitas vezes um amigo subia em um lado do palco para atrair o pobre homem da lei enquanto um espertinho aproveitava a brecha e ia sacudir a cabeça ao lado dos músicos, até pular, glorioso, sobre os amigos, previamente avisados."

Iggy Pop, o veterano cantor dos Stooges, de 62 anos, a quem é creditada a invenção do stage diving, revelou ao Estado, no ano passado, que parou com o recurso porque os fãs tinham pegado a manha de quando ele iria se jogar e estavam abrindo clareiras. Logo ele, o pai da matéria? É que Iggy quebrou uma costela assim. Caetano Veloso e Dinho Ouro Preto, que não têm nada a ver com tudo isso, caíram do palco recentemente e descobriram de forma muito dolorida que stage diving é para os doidos e os pássaros. Ou para Lady Gaga.

O Estadão

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